Resolução da ANS torna obrigatória a ampla cobertura para o tratamento de portadores do Transtorno do Espectro Autista, mas pais e mães ainda enfrentam dificuldades para conseguir reembolso integral
O sistema de reembolso das despesas pelos planos de saúde está regulamentado pela legislação (Lei 9.656/1998) e por resoluções da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Mesmo assim, inúmeros processos vão parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para discutir sobre os limites e a obrigatoriedade do reembolso.
Em 2023, em decisão da Terceira Turma do STJ, ficou estabelecido que, quando a operadora do plano se omitir em indicar um prestador de serviço de saúde da rede credenciada, o beneficiário tem direito ao reembolso integral do tratamento. A advogada Ohana Galvão, especialista em direito aplicado aos serviços de saúde, detalha a decisão.
“Se o contrato do plano de saúde não tiver cláusula de reembolso, o beneficiário do plano só pode pedir um reembolso se não tiver um profissional médico ou clínica especializada credenciados e disponíveis para prestar o atendimento no município do beneficiário. Ou ainda, quando não houver um meio de transporte para que o beneficiário vá até uma cidade próxima que tenha aquele médico ou clínica dos quais ele está necessitando.”
Mas também existem contratos que permitem que os beneficiários escolham o médico ou clínica para realizar a consulta ou procedimento de saúde. “Nesses casos, o reembolso é feito até um valor limite que deve ser estipulado no contrato. Para isso, a operadora de plano vai ter que informar ao consumidor quais são os procedimentos ou especialidades que podem ser escolhidos livremente pelo beneficiário”, detalha a advogada.
As operadoras não são obrigadas a reembolsar procedimentos que não estão inclusos no rol da ANS ou que não são devidamente justificados por laudo médico.
Tratamentos para Autismo
A contadora Andreza Maria Ferreira Oliveira, de Campinas (SP), é mãe do Eric. Hoje, com 6 anos, ele é diagnosticado como portador do Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas, desde os 16 meses de vida, a pediatra já notou alguns sinais.
“Eu já saí de dentro do consultório dela com as guias do plano de saúde para fazer todos os procedimentos que ele precisava”, conta Andreza.
A mãe de Eric diz que teve dificuldades para encontrar especialistas em TEA na rede credenciada, principalmente psiquiatra. A saída foi buscar o reembolso. Mas, no caso de Andreza, o contrato previa um limite de cobertura.
“A maioria dos psiquiatras hoje, principalmente o infantil, não está aberta a novos casos, principalmente quando você fala que a criança é TEA. Então, se você conseguir um, agarra com as duas mãos e fica. Por exemplo, uma consulta de um psiquiatra de R$ 700, eles reembolsavam R$ 450.”
Outro desafio que Andreza enfrentou foi a liberação do plano de saúde para que Eric conseguisse iniciar as terapias.
“Ele ainda não tinha um laudo fechado por conta da idade. Mas a médica disse que ele estava em investigação e que ele precisava iniciar o tratamento o mais rápido possível. Então foi preciso a gente abrir uma ocorrência no plano de saúde, subir para auditoria, fazer reclamação na ANS, aguardar na fila do profissional para fazer entrevista e saber se ele conseguiria atendê-lo.”
Andreza faz parte de uma rede de pais e mães de outras crianças com TEA e conta que já ouviu situações bem piores em relação aos planos de saúde.
“Nós ainda demos sorte; mas tem gente que tem a negativa logo de cara e ingressa no judicial. No meio do processo o plano começa a enroscar. Tira de uma clínica, põe em outra mais barata, que não tem o mesmo tratamento. Os planos sempre estão tentando achar uma brecha. E aí vai 4, 5 mil reais de advogado, mais despesa de processo. Até chegar na sentença, demora uns 2, 3 anos.”
Em 2023, a Terceira Turma do STJ decidiu que o tratamento multidisciplinar para portador de TEA deve ser amplamente coberto pelo plano de saúde. Dessa forma, os beneficiários têm direito ao reembolso integral dos procedimentos feitos fora da rede credenciada, incluindo sessões de musicoterapia. Mas a advogada Ohana Galvão ressalta que é preciso considerar algumas nuances.
“Houve uma importante resolução normativa (539/2022), onde a ANS definiu que algumas terapias específicas, quando prescritas por médico especialista, devem ser cobertas pelos planos de saúde. Agora, houve uma importante alteração na lei dos planos de saúde, onde ficou evidente que o rol da ANS não é taxativo, ou seja, ele não se esgota, e sim é exemplificativo. Isso quer dizer que os planos de saúde não podem se recusar a cobrir tratamentos e procedimentos que não constam no rol, mas, para tanto, tem que haver uma comprovação de eficácia desse tratamento, que seja baseada em evidência científica, em plano terapêutico ou em recomendações de órgãos de avaliação de tecnologias em saúde.”
O advogado Marcelo Depicoli Dias afirma que “ainda são frequentes as situações de rejeição de pedidos de aprovação de terapias recomendadas pelos médicos, mesmo pelos profissionais do próprio convênio. Boa parte das famílias de autistas se vê obrigada a procurar advogados e ingressar com ações para obter aquilo de que precisam. Felizmente, depois de uma fase de muita insegurança e decisões contraditórias, o Judiciário vem garantindo, na vasta maioria das vezes, o direito das pessoas às sessões”.
Ele também destaca um outro ponto importante: “são comuns situações em que os planos cessam o pagamento depois de algum tempo — por política interna ou problemas econômicos — e deixam os pais e responsáveis em situação complicada. Alguns determinam abrupta mudança de clínica e de profissionais, o que para autistas não é positivo e pode implicar em danos agudos ao processo de evolução. Outros simplesmente desamparam os responsáveis e aguardam a intervenção judicial, causando grande aflição à família”.
Na avaliação do advogado, “embora tenhamos um cenário menos incerto do que há alguns anos, ainda persistem os obstáculos na obtenção de cobertura ao tratamento do TEA. Não é um quadro tranquilo, em que a família se sinta acolhida, segura e tranquila com a perenidade da assistência. Evidente que há planos e planos, mas, no geral, os problemas são semelhantes”.
Como pedir reembolso
A advogada Ohana Galvão explica que para solicitar o reembolso de uma consulta ou procedimento médico, o beneficiário precisa preencher um formulário fornecido pela própria operadora do plano de saúde. Junto a esse formulário devem ser anexados os comprovantes de atendimento e notas fiscais de todos os procedimentos e materiais utilizados.
A especialista detalha o que fazer no caso de recusa da operadora em fazer o reembolso.
“De posse de todo esse material que comprova que o direito ao reembolso foi lesado, o beneficiário poderá judicializar a questão, requerendo o reembolso e até mesmo acumular esse pedido com uma indenização por danos morais, desde que fique evidente que houve uma negativa indevida, que ele passou diversos alvoroços que foram decorrentes dessa ilegalidade.”
Mas a advogada reforça que, por contrato, a operadora do plano de saúde pode não se comprometer a arcar com os 100% de reembolso, como é o caso de algumas que só oferecem 30% ou 50% do valor do procedimento.