Futebol e religião: fatores que unificaram o bairro do Tatuapé – No início do século passado, o Tatuapé não passava de região rural. Devido a essa condição, os costumes eram bastante semelhantes aos de algumas cidades do interior (há quem diga que até hoje isso acontece). O relacionamento das famílias era estreitado por laços de grande afeto.
Os vizinhos davam-se bem, parecia pertencerem uns às famílias dos outros. Não raro, os garotos os confundiam com seus parentes. Quando algum problema mais grave surgia na casa de uma família, os vizinhos da rua acudiam solícitos. Davam assistência não só material, mas principalmente moral e espiritual. Dividiam o pouco que possuíam, mesmo sendo difíceis os tempos e pobre a maioria dos seus moradores.
Quase sempre estavam juntos: nas missas, nos casamentos, nos batizados, nas quermesses e nos enterros. As alegrias e tristezas eram partilhadas por todos. Nas noites de calor, os adultos levavam as cadeiras para as portas da frente das suas casas e ficavam horas a fio batendo gostosos papos, enquanto a garotada desenvolvia, nas proximidades, inúmeras brincadeiras.
A população era constituída de diversas raças: portugueses, italianos, espanhóis, sírios e outras. No entanto, isso não era entrave para um perfeito relacionamento. Dava a impressão que ao chegarem ao Tatuapé todos fundiam-se numa só raça. Aliás, isso não acontecia só em nosso bairro, era uma constante em todas as regiões de São Paulo. Raças que fora do Brasil viviam em guerra, entrosavam-se perfeitamente nas terras de Piratininga.
Entre outros, a religião, na época, era um importante fator de unificação. A grande maioria, constituída de católicos, sempre estava presente aos diversos eventos promovidos pela igreja: missas, quermesses, procissões, rezas etc. Os párocos e capelões, como não podia deixar de ser, tinham grande influência regional.
Poucas eram as pessoas que não pertenciam a alguma congregação da sua paróquia. Pouquíssimas as jovens de família que não eram Filhas de Maria e raras as famílias que não tinham em seu seio um coroinha. A conduta dos padres era objeto de interesse de toda a comunidade. A índole de cada um e sua forma de atuar refletia-se no comportamento dos seus fiéis.
O FUTEBOL VARZEANO
Outro fator unificador, este apenas masculino, o futebol varzeano. Grande parte dos rapazes de então jogava nos inúmeros times do bairro. Aqueles que não praticavam o esporte, pertenciam às suas torcidas. Incontáveis clubes espalhavam-se por todos os cantos. A rivalidade das equipes do lado de baixo e do alto do bairro era incrível. Talvez os dois maiores representantes do extremado fanatismo fossem o Vila Primavera e o Sampaio Moreira.
A TRADICIONAL CADERNETA
Coisa interessante era como se efetuava o abastecimento do bairro naqueles longínquos dias. Empórios, estábulos, chácaras e vendedores ambulantes respondiam por esse trabalho. Os empórios ou armazéns, também conhecidos por vendas, praticamente forneciam de tudo.
Um dos primeiros da região foi o do senhor Amadeu, também conhecido por Caipira. Seu estabelecimento ficava na Estrada Velha da Penha (Celso Garcia), defronte da atual Biblioteca Cassiano Ricardo. De Guararema, Arujá, Santa Izabel e outras cidades do interior chegavam tropeiros trazendo as mais diversas mercadorias para esse armazém.
O Caipira tinha em seu estoque: feijão, arroz, batata, mandioca, rapadura; além de patos, perus, frangos, galinhas de Angola, tatus, coelhos etc. Os grãos de cereais eram vendidos a granel; os animais, vivos. Era coisa absolutamente normal encontrarem-se nessas casas, além dos produtos citados: cordas para poço, tamancos, vassouras, tabaco em corda, linhada para pesca etc. O café, recebido pelo proprietário em grãos crus, era torrado e moído no local. Ainda, na parte baixa do bairro, havia o armazém de secos e molhados do senhor Merege.
Este ficava na esquina da Estrada da Penha com a atual Rua Tuiuti. Mais tarde o senhor Merege o vendeu ao senhor Nunes, sendo finalmente transformado em bar. Na parte alta o armazém de Manoel de Freitas, mais tarde transformando-se na Padaria Montenegro, na Praça Silvio Romero, esquina da Tuiuti com a Padre Adelino, onde hoje funciona um Bingo; o Armazém do Antonio Turco, na Rua Serra de Bragança, próximo à Rua Serra de Japi; o do senhor Nogueira, este talvez o mais velho, na atual Praça Silvio Romero, encostado à Rua Serra de Bragança; o empório Ganha-pouco, da família Cabanal e outros.
Interessante a forma de comercialização destes antigos proprietários. Devido às grandes dificuldades econômicas pelas quais passava a maior parte das famílias, aqueles homens instituíram o uso de cadernetas, que eram preenchidas durante o transcorrer do mês com os valores das compras diárias, para serem pagas nos primeiros dias do mês seguinte. Era, pode-se dizer, uma antecipação do sistema de compras a crédito aplicado muitos anos depois.
Referente ao leite, a coisa se processava mais ou menos da seguinte forma: era grande o número de vacarias existentes no Tatuapé. Os armazéns de secos e molhados, já citados, não vendiam esse produto. Os donos das vacarias tinham considerável freguesia nos bairros mais centrais. A distribuição era feita por meio de carroças puxadas a burros, sendo o leite acondicionado em latões próprios.
Os moradores do bairro o compravam junto às porteiras desses estábulos. Na parte baixa, próximo a Estrada da Penha, as vacarias pertenciam às famílias Neto, Correia, Queda e alguns outros. Na parte alta, nas proximidades do atual Largo do Bom Parto, as famílias Pavão, Gadelha, Andrade, Chico Agostinho dominavam a produção. A família Ziccardi, embora tivesse vacas apenas para o consumo próprio, chegou a fornecer leite para o senhor Washington Luiz, na ocasião governador de São Paulo. A pureza do produto e a sanidade do gado eram controladas pelas autoridades.
É de se louvar o cuidado dispensado à saúde pública pelos governantes de outrora. Paralelamente à venda do leite de vaca, vendedores ambulantes passavam com suas cabras pelas ruas do bairro, oferecendo o substancioso produto desses animais. Por preferência ou por aconselhamento médico, muitas pessoas necessitavam dele.
O curioso no trabalho desses vendedores era a forma de apregoar sua mercadoria: amarravam no pescoço da cabra um par de sininhos, que ao tilintarem anunciavam sua chegada. Mais tarde, já na década de 30, a Companhia Vigor começou a distribuir leite pasteurizado por todas as regiões do bairro. O meio de transporte ainda era o mesmo: carroção puxado por uma parelha de burros.
No entanto era constituída de carroceria de aço, totalmente fechada e pintada de branco. Em sua parte traseira tinha um bico, semelhante a uma torneira, cuja vazão era conseguida através de uma manivela, para o enchimento das garrafas e vasilhas que as donas de casa apresentavam ao condutor. Com a chegada dessa companhia ao mercado e sua maneira mais prática de proceder a distribuição, pouco a pouco as vacarias foram desaparecendo.