Uma ode aos desajustados, aos incompreendidos, aos outsiders, aos párias. Uma homenagem ao cinema. Um convite ao escapismo. É isso o que o diretor Guillermo del Toro faz com “A Forma da Água”, filme vencedor do Oscar 2018, uma produção de cativante beleza, interpretada por um elenco afiadíssimo.
Passada nos anos 1960 (quando a Guerra Fria pegava fogo), a história é apresentada como uma fábula, protagonizada por uma “princesa sem voz”. Muda (e nem por isso infeliz), a faxineira Eliza Esposito (Sally Hawkins) trabalha numa base secreta do governo dos Estados Unidos, que inclui um laboratório comandado pelo doutor Hoffstetler (Michael Stuhlbarg). Uma criatura capturada nos confins da América do Sul é levada para lá. Pouco a pouco, Eliza vai se afeiçoando a ela. Sim, quem ama o feio bonito lhe parece.
Quando os norte-americanos decidem usar o “monstro” como cobaia na corrida espacial, entra em cena o agente policial moralista e sádico Strickland (Michael Shannon). Mas a vida do “visitante” corre perigo. E Eliza vai acionar o amigo e vizinho Giles (Richard Jenkins) e a companheira de trabalho Zelda (Octavia Spencer, a “boca” de Eliza, a quem cabe as falas mais divertidas) para ajudá-la em um elaborado plano.
Para Guillermo, não basta o preciso uso de todos os aspectos do cinema em confluência para um bem comum, ou seja, o de contar essa história. Eliza e Giles, um pintor fracassado, são fãs de musicais, cujo glamour servia como válvula de escape para a rotina de uma gente sonhadora. O elemento é aproveitado com maestria pelo roteiro assinado por del Toro e Vanessa Taylor dentro dessa estrutura narrativa.
Ficasse restrito ao aspecto lúdico, “A Forma da Água” já prestaria um serviço e tanto aos fãs de cinema. Mas, não. Guillermo vai ainda mais além, inserindo componentes… “picantes” que conferem ainda mais camadas a esse complexo e maduro microcosmos de personagens. É “Shrek” para maiores, se você preferir. Maiores de idade e evoluídos em maturidade.
A relevância do filme não seria possível (ou não teria o mesmo impacto, pelo menos) não fosse a sutileza da interpretação de Sally Hawkins, subaproveitada estrela de “Simplesmente Feliz” (2008), indicada ao Oscar de atriz coadjuvante por “Blue Jasmine”. Nesse ponto, o casting também diz muito sobre os objetivos da obra. Embora ninguém diga abertamente, para os padrões de Hollywood, Hawkins poderia ser considerada “feia”.
Nada é aleatório em “A Forma da Água”. Com o filme, Guillermo del Toro usa todas a ferramentas do cinema para criar um universo mágico, que ilumina aqueles que não se encaixam.
Del Toro, embora tenha abordado filmes em larga escala e estar pronto para franquias, nunca sucumbiu à estética autoritária do blockbuster de Hollywood. Ele é um democrata reflexivo, cujas simpatias perdidas não coagularam na auto-piedade do super-herói. O mais bem-vindo sentimento sobre “A Forma da Água” é a sua generosidade de espírito, que se estende além do casal central.